1959, o ano em que Brasília não parou
Seis meses antes da inauguração, não havia quase nada pronto em Brasília. Com poucas opções de lazer, precárias condições de moradia e sob pressão do prazo estipulado por JK, peões trabalhavam sem parar
postado em 19/10/2009 08:00 / atualizado em 19/10/2009 16:08
Renato Alves
Por meio de uma série de reportagens que começa hoje, baseada em documentos, livros, fotografias antigas e depoimentos de pioneiros e estudiosos, o Correio refaz o cenário de Brasília 50 anos atrás. Mostra a luta dos trabalhadores para cumprir o prazo determinado por JK e as dificuldades de se viver em uma cidade em construção. Revela como o projeto urbanístico de Lucio Costa e os monumentos de Oscar Niemeyer mexeram com o mundo no começo da segunda metade do século passado,
Esqueletos de concreto
Em outubro de 1959, Brasília tinha 574 casas prontas, todas à margem da W3 Sul (veja Para saber mais),
Os principais prédios da administração pública, como o Congresso Nacional e o Palácio do Planalto, não passavam de esqueletos, seis meses antes da data de inauguração da nova capital. Assim também se encontrava a Catedral. Dos 11
Emprego garantido
Antônio desembarcou em Brasília pela primeira vez em 9 de dezembro de 1956. Alagoano de São José da Laje, vinha de Itauçu (GO), onde tentara ganhar a vida como garimpeiro.
Como todos os outros trabalhadores da construção civil da época, Antônio buscava abrigo em acampamentos das empreiteiras. “No começo, a gente dormia no chão, debaixo de lona mesmo. Depois é que vieram os galpões de madeira, onde a gente comia e dormia”, lembra o servente de pedreiro. Quando recebiam seus salários, os trabalhadores gastavam boa parte em noitadas nos bares e na zona de prostituição — a Placa da Mercedes — da Cidade Livre, hoje Núcleo Bandeirante. “O Maracangalha era um dos bares mais famosos de lá. Nós bebíamos muito. Não tinha muito mais o que fazer”, ressalta Antônio. Vez ou outra, os bares e bordéis tinham atrações musicais, principalmente forrozeiros goianos.
Força temida
Com a bebedeira e a falta de lazer, brigas e desentendimentos também eram comuns na Cidade Livre. Cabia à Guarda Especial de Brasília (GEB) apaziguá-las. A delegacia da unidade ficava na Velhacap (atual Candangolândia). A GEB, força policial montada pela Novacap, era temida pelos operários. Muitos relembram que a falta de formação adequada dos que ingressavam nessa força policial teria contribuído para as arbitrariedades cometidas. A grande concentração de trabalhadores, submetidos à intensa jornada e a precárias condições de moradia e trabalho, além do curto prazo para a conclusão das obras, eram a justificativa para a atuação da GEB.
Na Cidade Livre, os operários eram recrutados para ser fichados nas diversas empresas construtoras e na Novacap. Em outubro de 1959, a localidade tinha armazéns de secos e molhados, casas de tecidos, restaurantes, barbearias, tinturarias, marcenarias, açougues, farmácias, duas escolas, dois cinemas, bares, pensões e hotéis. Esses últimos, mesmo em madeira, ofereciam o conforto de colchões de molas. Já os cinemas eram o Cine Bandeirante, onde só passava filme de faroeste norte-americano, e o Cine Brasília, com obras de temas variados. Também havia construções para celebrações religiosas, como uma igreja batista, um local para cultos espíritas e uma igreja católica.
Memórias da Construção: Brasília seis meses antes da inauguração
Hospital pioneiro
A Cidade Livre também abrigava o único hospital de Brasília, 50 anos atrás. Lá ficava o Hospital Juscelino Kubitschek de Oliveira (HJKO). Inaugurado em 6 de junho de 1957, em outubro de 1959 tinha 12 médicos, 32 enfermeiras, 56 leitos. Nesses dois anos, o HJKO havia anotado 3,2 mil internações, 1,1 mil partos e 91 mortes. Desativado em 1968, virou posto de saúde; depois, área de invasão. Acabou tombado na década de 80 e sendo transformado em Museu Vivo da Memória Candanga. Espaço que o contador Luís Carlos Carvalho, 65 anos, visitou pela primeira vez, a convite do Correio, sexta-feira. “Isso aqui está mexendo muito comigo. Me fez voltar no tempo”, comentou, tentando segurar as lágrimas.
Luís Carvalho chegou a Brasília em 20 de maio de 1958. Aos 14 anos, deixou Goiânia, a terra natal, para morar com os pais novamente, que já viviam na nova capital. O pai dele havia vindo antes para trabalhar na Novacap como motorista. Ele, a mulher e os sete filhos ocupavam um barracão na Candangolândia. Luís arrumou emprego de ajudante em uma loja de auto-peças da Cidade Livre assim que desembarcou no Planalto Central. No mesmo ano, comprou uma bicicleta e decidiu trabalhar como ambulante. “Vivia nos canteiros de obras do Plano Piloto. Perguntava aos peões o que queriam, anotava, ia correndo pela terra até a Cidade Livre, comprava a encomenda e a revendia ao cliente”, conta.
Gerador a diesel
Já em 12 de outubro de 1959, Luís Carvalho virou colega de trabalho do pai. Aos 15 anos, era apontador fiscal da empresa. Nessa função, controlava o ponto dos colegas em alguns pontos. Na época, a estatal contava com 12 mil empregados, 20% da população. “Era muita gente. Mas Brasília tinha pouco de cidade. Com a poeira e o cerrado, parecia mais um cenário de faroeste”, lembra Luís Carvalho. Na época, não havia iluminação pública em nenhuma parte de Brasília. A energia dos canteiros de obras e da Cidade Livre vinha de geradores a diesel comprados pela Novacap, pelas construtoras e por comerciantes.
Catetinho, aeroporto e acampamentos da Novacap e das construtoras eram abastecidos pela energia elétrica produzida por duas turbinas da usina instalada no Ribeirão Saia Velha em 16 de maio de 1958, perto de onde hoje está Santa Maria. O aeroporto ficava no mesmo local do atual. Tinha a pista da Base Aérea e outra maior, além de um terminal de passageiros, feito de madeira. Apesar da precariedade, recebia voos regulares de capitais brasileiras. “Varig, Vasp, Loyd, Panair do Brasil, aviões de todas essas empresas operavam aqui”, relata Adirson Vasconcelos, 73 anos, que em 1957 já trabalhava como jornalista em Brasília.
Viagens longas
O movimento de aeronaves no improvisado aeroporto de Brasília era tão intenso que, em 1959, a agência da Vasp na capital se tornou a primeira em vendas de passagens no Brasil. Já o transporte rodoviário para a capital era feito quase exclusivamente pela empresa Araguarina, que oferecia linhas diárias para Goiânia e Anápolis. O trajeto Brasília-Anápolis, por exemplo, durava 12 horas, em estrada de terra, pois ainda estava sendo aberta a BR-060, rodovia que ligaria as duas cidades. Além dos ônibus, era bastante comum, também, a vinda das pessoas em caminhões pau-de-arara e até mesmo a pé. Essas jornadas levavam de 30 a 40 dias, dependendo do local de origem.
Já na cidade em construção, os caminhões das construtoras e jipes eram praticamente os únicos meios de transporte, há 50 anos. “Eu mesmo comprei um Jeep Willys Overland em 1958. Por causa dele e da minha mocidade, fazia muito sucesso entre as meninas”, revela Adirson Vasconcelos, que em 1959 tinha 23 anos. Na época, Brasília contava com 17 mulheres para cada grupo de 100 homens, sendo que hoje, a proporção normal em todo o mundo é de um por um. “Era um perigo uma mulher sair nas ruas do Plano Piloto. Quando um caminhão carregado de operários cruzava com uma, era uma confusão. Dava até briga”, lembra Luís Carvalho, hoje gerente financeiro da Novacap.
Incentivo ao comércio
Como parte das obras de infraestrutura necessárias à construção de Brasília, foram abertas pela Novacap, no fim de 1956, as principais avenidas da Cidade Livre. Para incentivar a vinda de comerciantes, não havia cobrança de impostos. Daí a origem do nome. Os lotes foram cedidos em sistema de comodato, a escritura não era definitiva e deveria ser devolvida à Novacap no fim de 1959. Sua existência estaria limitada ao período da construção (1956-1960), o que acabou não ocorrendo.
Mito ou massacre?
O mais inflamado dos mitos da construção de Brasília diz respeito ao que ocorreu no acampamento da construtora Pacheco Fernandes, no carnaval de 1959. Há quem já tenha escrito que caminhões de operários mortos pela GEB foram retirados do acampamento. Na versão oficial, houve uma morte e alguns feridos. O que se convencionou chamar de ‘‘massacre da Pacheco Fernandes’’ continua a ser tratado no campo das versões.
Leia a versão completa da primeira reportagem da série Memórias da Construção na edição impressa do Correio desta segunda-feira (19/10)
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