quarta-feira, 16 de março de 2022

 Traços monumentais: 65 anos da escolha do projeto de Lucio Costa

Há 65 anos, os projetos de Lucio Costa entraram para a história ao vencerem o concurso para a construção da nova capital do Brasil

 (crédito: Editora 34/Reprodução)(crédito: Editora 34/Reprodução)

"Céu de Brasília, traço do arquiteto. Gosto tanto dela assim", com o perdão pelo clichê, é difícil descrever a capital sem lembrar dos versos de Djavan. E hoje, 16 de março, comemoramos os 65 anos da data em que os traços de Lucio Costa foram escolhidos para contrastar com o horizonte vasto do Planalto Central.

Nesse mesmo dia, em 1957, a Comissão de Planejamento da Construção e da Mudança da Capital Federal escolheu o projeto urbanístico do Plano Piloto, criado pelo arquiteto e urbanista Lucio Costa.

Entre arquitetos e empresas do ramo da época, o concurso teve inicialmente 62 inscritos, dos quais apenas 26 apresentaram suas propostas ao júri, que tinha em sua banca nomes como Oscar Niemeyer e Israel Pinheiro.

Reza a lenda que Lucio não tinha a intenção de participar da disputa, como ele mesmo admite na apresentação de seu projeto, onde é possível ler: "Não pretendia competir e, na verdade, não concorro — apenas me desvencilho de uma solução possível, que não foi procurada, mas surgiu, por assim dizer, já pronta".

Com cerca de 20 páginas datilografadas e desenhos e rascunhos feitos em folhas A4, a ousadia e o texto poético do arquiteto surpreenderam e acabaram por vencer as demais propostas, apesar dos outros projetos contarem com maquetes e apresentações bem mais elaboradas.

A Carta de Atenas

No Congresso Internacional de Arquitetura Moderna de 1933, surgiu a Carta de Atenas. O documento, escrito pelo arquiteto, urbanista, escultor e pintor Le Corbusier, determinava que uma cidade deve ser concebida de modo funcional, considerando de forma clara as necessidades do homem.

Com base nesse conceito, que preconiza a divisão entre as áreas residenciais, de trabalho e de lazer, nasceram as quatro escalas do Plano Piloto e Brasília se tornou um dos maiores exemplos concretos da Carta de Atenas.

As escalas são, inclusive, o que a designer e fotógrafa Julieta Sobral mais gosta na cidade projetada pelo avô. A filha da arquiteta e ex-presidente do Iphan Maria Elisa Costa, que seguiu os passos do pai, revela que a Escala Gregária é a sua preferida.

"Acho as superquadras fascinantes, o espaço comum das quadras. Adoro que a mãe pode chamar a criança dando um berro lá embaixo e ser atendida. Do que ele criou, é uma das coisas que mais gosto".

Julieta acrescenta o quanto ações que ferem as escalas prejudicam a cidade e a importância da preservação desses quatro aspectos para o legado de Brasília. Para ela, cercas e grades fechando os pilotis são terríveis e desvirtuam a origem da cidade, por exemplo.

O arquiteto e urbanista Andrey Rosenthal ressalta que uma das vantagens da Escala Residencial e do limite de altura dos prédios é que a baixa densidade permite outras relações. Entre elas, a proximidade, o controle, a melhoria dos padrões ambientais e mais áreas verdes.

Porém, faz uma grande ressalva ao mencionar que essa qualidade de vida não é privilégio de todos e que é importante sempre lembrar que Brasília não se resume ao Plano Piloto e é necessário olhar além.

Andrey aponta, também, os desafios que surgem em virtude do desenho da capital, como a baixa ocupação do solo, a descontinuidade entre as edificações e o rodoviarismo, que, em virtude de seu caráter diferenciado, pedem também soluções próprias.

A cultura dos Eixos

Os desenhos da cidade inspiram criações de arte em praticamente todas as áreas da cultura. Além de Djavan, Renato Russo também canta sobre a beleza da capital. João de Santo Cristo desembarca na Rodoviária e fica bestificado, assim como os brasilienses que se deparam com as imagens aéreas de tirar o fôlego feitas por Bento Viana ou com os poemos simbólicos de Nicolas Behr.

Tornando-se motivo de inspiração para tantos artistas, é de vital importância preservar o primeiro conjunto urbano do século 20 a ser reconhecido como Patrimônio Mundial pela Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura (Unesco).

O secretário de Cultura e Economia Criativa, Bartolomeu Rodrigues, o Bartô, acredita que o traçado de Lucio Costa modificou a nossa forma de "viver cidades" e que Brasilia se tornou uma cidade bastante acolhedora

Rodrigues acredita que os eixos e tesourinhas de Lucio Costa são grandes responsáveis por alguns dos regionalismos da capital, fazendo parte de um dialeto e uma forma de se locomover e se orientar muito características.

"Até nosso GPS natural é diferente. Moro aqui há 47 anos, quando saímos de casa somos guiados pela memória da cidade. Tanto que quem sai daqui costuma ficar confuso em outras capitais. Nos habituamos às linhas retas, e o desenho de Lucio está sempre em nossa cabeça".

O secretário ressalta ainda que a produção cultural, como o rock brasiliense, é um reflexo da forma de viver em Brasília. "A geografia foi fundamental para o nascimento de bandas como a Legião Urbana, era possível fazer barulho de noite no meio da rua e não incomodar ninguém".

Atualmente, o processo se repete e a atividade cultural é altamente voltada para os espaços abertos e para a ocupação da cidade, com apresentações de dança, de bandas, feiras e manifestações artísticas.

À frente da pasta cultural do GDF, Bartô acredita que as novas gerações estão marcando território e é necessário investir na preservação e revitalização para que esses espaços continuem sendo celeiros artísticos.

Andrey, como urbanista, ressalta a importância de dialogar com a comunidade e de construir, de forma participativa, regras de convívio social mais justas. Ele chama atenção para o fato de que nem todos são contemplados pelas "indiscutíveis qualidades de Brasília" e que, uma vez isso se torne realidade, mais vozes falaram pela preservação.

"Aqui entre nós, numa cidade em que não existe transporte coletivo de qualidade, quem vai se importar com um puxadinho da comercial elegante? Só nós mesmos. É preciso ampliar esse debate", defende.

Áreas como a Concha Acústica e a Praça do Museu da República, são alguns dos locais muito usados pelos jovens e que foram revitalizados pela secretaria. Um ponto de preocupação e alvo de promessas é o Teatro Nacional e as passagens subterrâneas do Eixão.

"Isso é a nossa grande preocupação, e existe um desejo grande de voltar a usar esses espaços tão ricos para nossa história e cultura. Brasília está bem preservada, mas precisa de cuidado permanente, que ultrapasse governos", completa.

65 anos

Datas como a de hoje são lembretes de esperança para Julieta Sobral. "É uma lembrança de que o Brasil pode dar certo. No governo Juscelino existia a esperança de uma nação mais justa e atualmente nos afastamos muito disso".

Lucio, segundo a neta, não era muito ligado em datas e efemérides. Era um homem de ação, que acreditava no poder das atitudes no dia a dia, o que para Julieta é mais um exemplo da confiança de que o Brasil pode voltar a ser a promessa que foi um dia.

"É uma honra ser neta de Lucio Costa. Sou grata ao universo por ter me colocado neste planeta em uma família com um legado tão importante", completa.

Ailim Cabral
postado em 16/03/2022 06:00

quarta-feira, 9 de março de 2022

 

Torre de TV festeja 55 anos com programa de festa e atividades

Com direito a festividades, local de um dos mirantes mais conhecidos do DF celebra o quinquagésimo-quinto aniversário com uma vista na qual é possível enxergar todos os ângulos do centro de Brasília

Torre de TV foi projetada por Lucio Costa e é um dos mirantes mais conhecidos do DF -  (crédito: Roberto Castro/Mtur)Torre de TV foi projetada por Lucio Costa e é um dos mirantes mais conhecidos do DF - (crédito: Roberto Castro/Mtur)

A Torre de TV cumpre 55 anos de idade nesta quarta-feira (9/3). Ainda que inanimada, a Torre dá brilho e alma para o coração de Brasília, permitindo os olhares de brasilienses e turistas às belezas da capital da República. Projetada por Lúcio Costa, a estrutura de 230 metros de altura foi fundada um mês e 11 dias antes do sétimo aniversário da cidade.

Uma série de comemorações para celebrar o aniversário do cartão-postal ocorrerá de hoje a sábado, unindo não somente o mirante da Torre, mas também a Feira da Torre, a fonte luminosa da Torre e o Jardim Burle Marx. Até mesmo uma visita virtual é possível a partir desta quinta-feira (10/3), no perfil do ponto turístico no Instagram.

Com 75 metros de altura, o mirante da Torre terá programação nos finais de semana e feriados durante o período das festividades, das 9h às 17h45. As ações promovidas pelo Banco de Brasília (BRB) são parte da nova gestão. Além da integração e dos horários especiais para a visitação do mirante, um espetáculo ornamental acontece hoje, das 16h às 0h.

A atração segue nesta quinta-feira (10/3), das 11h às 14h e das 17h às 22h. Na sexta-feira (11/3) e no sábado (12/3) o espetáculo ornamental será das 11h às 14h e das 17h à 0h. De hoje a sábado, as projeções visuais que farão parte das festividades têm início às 19h.

Paulo Martins*

postado em 09/03/2022 14:45 / atualizado em 09/03/2022 14:47

domingo, 6 de março de 2022

 COMÉRCIOS AFETIVOS

Tradição familiar e pioneirismo mantêm comércios emblemáticos no DF

Comércios afetivos que passam de geração para geração fazem parte da vida dos brasilienses são apoiados por moradores vizinhos

Isamu Maeda e a família colecionam 54 anos de lembranças, em Taguatinga, com o Bazar do Papai -  (crédito:  Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)Isamu Maeda e a família colecionam 54 anos de lembranças, em Taguatinga, com o Bazar do Papai - (crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

Certos comércios do Distrito Federal são tão tradicionais que quase se confundem com a região em que estão localizados. Alguns remontam aos primeiros tempos da capital federal, são pioneiros da década de 1950. O Correio visitou alguns desses lugares em busca de relatos e curiosidades, conversou com clientes e ouviu quem, lá atrás, acreditou em um projeto e acabou abrindo um negócio que se tornou emblemático. Em diferentes regiões, eles acumulam histórias e carregam carinho e afeto de diferentes gerações de moradores.

Em fevereiro de 1968, surgiu o Bazar do Papai, em Taguatinga, um legítimo armarinho à moda antiga, com artigos de costura e decoração. A mobília é a mesma desde o lançamento e foi idealizada pelo fundador Isamu Maeda, 85 anos. "Todos os móveis que estão aqui dentro da loja foram projetados por mim. Eu desenhei e mandei confeccionar", orgulha-se o pioneiro. A filha Amélia Maeda, 49, compartilha do carinho pelo comércio. Herdeira e trabalhando ativamente na loja, ela acompanha desde pequena como tudo começou: o pai e o avô, inspirados por um restaurante famoso em São Paulo, escolheram o nome e decidiram empreender.

Tânia Mendes, 64, é moradora de Taguatinga há 50 anos, e conhece o ponto comercial desde que a família se mudou para a região. Ela lembra que sua mãe, já falecida, comprava aviamentos — apetrechos de decoração e costura — no Bazar do Papai. "Ela costurava para a família e acabei aprendendo com ela. Como sou tricoteira e crocheteira, é lá que sempre encontro o que procuro. Tenho muito carinho pelos donos, que sempre prezam pelo bom atendimento", comenta. "Depois de casada, fui morar por um tempo em Minas Gerais. Minha mãe fez uns pijaminhas de flanela quando meus filhos nasceram, e ela levava o casaquinho de todos na loja para pregar os botões. De todos os que foram feitos, um eu guardo até hoje. Esse casaquinho tem 42 anos", afirma.

Parte da cidade

Em Sobradinho, o Bazar Barreto faz parte da rotina dos moradores da região há 60 anos. O nome escolhido é uma homenagem à família dos proprietários, nada de modismos, que, desde então, têm se dedicado ao comércio que oferece artigos para o lar, brinquedos e decoração. Aristides Barreto, 94, mais conhecido pelos clientes como 'seu' Barreto, lembra que começou com uma banca de camelô. "Somente com Deus e minha coragem. Com honestidade, fui juntando economias, até que consegui montar a lojinha", emociona-se. Ele afirma que os frequentadores tratam o local como a "loja da vovó". "Todo mundo gosta de vir aqui, desde crianças a idosos, e eu fico muito satisfeito com isso. Sobradinho é parte da minha família", diz. Apesar da idade, Aristides não se afasta dos clientes nem pensa em parar. "Posso até tirar alguns dias para descansar, mas logo dá saudade e eu volto, não consigo ficar sem isso daqui", brinca.

Dedicação acompanhada por moradores como Eurico Rodrigues, 47. Freguês assíduo, ele também é o cabeleireiro da esposa do 'seu' Barreto há quase 30 anos. "Dá para dizer que é uma troca, sou cliente dela, assim como ela é minha. Além disso, gosto de passar aqui para tomar o chá que eles fazem e saber como eles estão, nem que seja uma vez por semana", ressalta. "Algo de que sempre me lembro foi quando alguns comerciantes da quadra se juntaram para comemorar o aniversário de 93 anos dele", recorda.

O motorista Adriano Rezende, 58, frequenta a loja desde criança e começou com o hábito levado pela mãe. "Durante todo esse tempo, costumo vir aqui nem que seja para saber como eles estão, conversar um pouco. Por coincidência, o nome da esposa do 'seu Barreto' é o mesmo da minha mãe, Maria. Isso é mais um fator que faz eu considerá-los demais, como se fossem da minha família", garante Adriano.

De mãe para filha

Dentro da Feira do Guará, uma banca se destaca entre as muitas opções de quitutes e sabores. A Universidade do Pastel é tão tradicional quanto a própria feira. Popularmente conhecida como pastelaria do gaúcho, ela funciona há mais de 20 anos, segundo Eitor Moraes, 67, proprietário. "Comecei indicado por uma amiga e achava que isso aqui não seria bom. Eu era gerente de hotel na época, só que um dia eu me convenci, pois a popularidade da feira era boa", lembra. "No começo, eu não sabia nada de pastelaria. Jogava farinha para o alto, e o vento trazia para a minha cara, ficava todo branco. Nesse momento eu pensava: no que me meti", diverte-se Eitor. Sobre o nome e apelido, ele tem uma explicação. "A ideia surgiu pois eu tenho duas formações (acadêmicas) e acabei vendendo pastel. O apelido veio pelo fato de ser do Rio Grande do Sul", explica.

Cliente da Universidade do Pastel desde que se entende por gente, a bancária Bruna Rocha, 32, diz que, durante o passeio na feira, uma paradinha na pastelaria é uma tradição familiar. "Virou uma memória afetiva, porque é uma coisa que lembra a infância. Parar na feira, comer pastel e tomar caldo de cana é uma coisa que veio de criança. Independentemente do que a gente vem fazer aqui, sempre paramos na pastelaria, nem que seja para tomar o caldo, mesmo não estando com sede", admite. "Foi minha mãe que me influenciou. Dá para dizer que é uma tradição passada de mãe para filha. Quando eu viajo, inclusive, procuro uma feira que tenha pastelaria, justamente para me lembrar daqui. É um hábito que carrego para qualquer lugar que eu vá", conclui a bancária.

Muitas recordações

Outro estabelecimento bastante conhecido por quem mora no DF, principalmente no Plano Piloto, é a Pioneira da Borracha, fundada por Hely Walter Couto, 96. A decisão de abrir a loja veio quando o irmão de um amigo ofereceu um lote para que ele se mudasse de Belo Horizonte para Brasília, no fim dos anos 1950. Hely, que até então tinha uma alfaiataria, voltou para Minas e falou com seus funcionários sobre a novidade. "Contei que vinha para Brasília para abrir uma 'Casa da Borracha'. Um deles perguntou se já existia alguma loja do ramo, e eu disse que não, então, ele sugeriu que a chamasse de pioneira. Foi assim que surgiu o nome da loja, que teve a primeira unidade inaugurada no Núcleo Bandeirante", relembra.

Cliente da Pioneira da Borracha há vários anos, Euvaldo Mendes, 61, afirma que, depois de algum tempo, acabou criando um vínculo com o estabelecimento. "Conheço alguns funcionários, quase com um vínculo de amizade, e é bom vir aqui. Um tio, que mora próximo, começou a me trazer aqui. Eu aprendi o caminho e, até hoje, tenho carinho. Prefiro comprar aqui do que em algum shopping. Mesmo quando eu não preciso de nada, passo aqui na loja e acabo levando alguma coisa", revela o aposentado.


sexta-feira, 4 de março de 2022

Aos 70 anos, artista baiano Renato Matos fala de sua trajetória em Brasília

 

O artista plástico em plena atividade -  (crédito: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)

O artista plástico em plena atividade - (crédito: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)

Aos 70 anos, artista baiano Renato Matos fala de sua trajetória em Brasília

Em entrevista ao 'Correio', o artista Renato Matos relembra apaixonamento por Brasília, grandes parcerias e episódios marcantes da carreira

Em meio a batuques, cores e orixás de Salvador, nascia, em 4 de março de 1952, Renato Matos dos Santos. Era para ser uma vida bem baiana para um jovem artista plástico em começo de carreira, quando foi convidado para fazer uma exposição, no início dos anos 1970, na capital do país. "A cidade futurista, e sua arquitetura moderna, remeteu-me a desenhos de Flash Gordon, ou algo como a Bauhaus", destaca Renato, que hoje comemora 70 anos de vida. Ao Correio, o autor do clássico candango Um telefone é muito pouco conta da carreira, das influências e afirma o amor pela arte. "É essa diversidade artística que me sustenta e me faz permanecer vivo e ativo. Cada dia, uma descoberta". Evoé, Renato!

ENTREVISTA / RENATO MATOS

Como era a Brasília que você colocou os olhos pela primeira vez, vindo da Bahia, nos anos 1970?

Eu tinha 22 anos quando desembarquei na Rodoviária do Plano Piloto para fazer uma exposição na cidade. Começava minha carreira de artista plástico e a cidade futurista, e sua arquitetura moderna, remeteu-me a desenhos de Flash Gordon, ou algo como a Bauhaus. Fiquei apaixonado por tudo. Adaptei-me à comunidade artística da cidade, conhecendo figuras como o ator Guilherme Reis, o diretor Hugo Rodas. Minha vida era teatro e música, além da pintura e do entalhe em madeira.

Você é um baiano que misturou suas raízes com o cerrado e criou uma textura nova na música da capital? Esse caldo sonoro começou no Concerto Cabeças?

Foi exatamente no Concerto Cabeças, organizado pelo ator Neio Lúcio que consegui mostrar minha música para um público maior e, também, apresentar meus trabalhos a óleo sobre terra na Galeria Cabeças.

Todo mundo conhece Um telefone é muito pouco, que virou sucesso nacional na voz de Leo Jaime. Como você reage quando alguém pede para você cantá-la? Te incomoda ser visto como artista de uma música só?

Não, porque tenho mais de 300 composições — algumas praticamente inéditas — e disco lançados com boas parcerias, como na música A taba, que fiz com Carlos Cor das Águas, de Salvador, e que foi o primeiro sucesso de Ricardo Chaves no carnaval da Bahia.

"Ah, essa solidão celular. Ter todos ao alcance e não ter com quem falar", versos do seu parceiro TT Catalão que você musicou e se transformou num clássico pós-moderno, pós-tudo. Você é um Tom Zé candango, cuja poética transcende o modismo. Como conviver num país em que a arte é de plástico, de consumo rápido como aqueles cigarros de pen-drive?

Tom Zé, assim como outros grandes influenciadores da cultura brasileira, como Oswald e Mário de Andrade, da Semana de 22, veio do movimento tropicalista, que fez minha cabeça. Meu contato com o mestre suíço Walter Smetak na Bahia e outros músicos também formaram meu universo sonoro.

Você teve muitas chances de ir para a Cidade Maravilhosa, assinar com uma gravadora internacional, ganhar dinheiro e se vender por alguma fama, mas não quis, por quê?

O que é bom, perdura. E quem perde são os "consumidores do imediato", sem o mínimo de autocrítica. Assim também é a falta de bom gosto e de consciência política do país, mas isso fica melhor com o tempo. Talvez pela rebeldia, não me arrependi de nada. Ainda estou vivo, graças à minha criatividade, que me salva todos os dias.

Que lembranças você tem de Renato Russo, de Cássia Eller de seus amigos do Liga Tripa?

As lembranças são as mais positivas com Cássia, gostava do dia a dia com Renato e dos encontros musicais que tínhamos na salinha que usava no Brasília Rádio Center. Quanto ao Liga Tripa, estamos sempre juntos na varanda do Leão da Serra (centro gastronômico e cultural no Taquari). Ultimamente, temos feito uma roda de composição na varanda do lugar, com Sérgio Duboc, Vicente Sá e Fabrizio Morelo... Brevemente, gravaremos algo.

Hoje você tem uma parceria sólida com o poeta Vicente Sá. Com quem mais você queria fazer uma música?

Um bom parceiro é sempre bem-vindo. Recentemente, me encontrei com o poeta Nicolas Behr, comentamos sobre a Rodofernália, uma canção de nossa parceria, combinamos de fazer mais. E você, Zé, quem sabe, poderemos fazer umas músicas juntos...

Antes, a rapper Flora Matos era filha do famoso Renato Matos, hoje é o contrário. Como você vê o crescimento musical de Flora?

Engraçado, mano. Quanto ao crescimento musical e o prestígio de Flora, eu me sinto orgulhoso pelo seu progresso. Às vezes, penso que ela faz parte da continuidade do espírito musical da família.

Em 1989, você gravou o compacto Grande Circular. Em seguida, formou a banda Acarajazz, com músicos da cidade, também lançou o LP Plug, que teve boa repercussão... Era uma época de grande efervescência cultural, teatros lotados, bandas e cantores surgindo. Hoje, temos espaços fechados, uma cena cultural tomada por uma cultura rasteira e sem graça. O que, na sua opinião, pode ser feito para reverter essa situação?

Acho que não reverterá tão cedo e nem o novo normal será tão fácil de adaptação. O velho normal não retornará. Tudo será diferente e será preciso treinamentos na humanidade inteira. Até as formas de consumo, de ouvir e de dançar... De ir a shows também. Estamos vivendo os últimos dias do que se dizia ser normal.

Poucos conhecem a sua grandeza como artista plástico, que fez exposições na cidade. Você é também construtor de instrumentos... Como, ao 70 anos, conciliar tantas atividades?

É essa diversidade que me sustenta e me faz permanecer vivo e ativo. Cada dia, uma descoberta. Quanto à criação de instrumentos, não sou luthier, eu crio esculturas sonoras, descubro sonoridades das superfícies dos objetos, coisa que aprendi com Smetak e Hermeto Pascoal.

https://www.youtube.com/watch?v=gYUiYhdltl4&t=6s

Zirig dum Brasília - Art and Dream of Renato Matos do cineasta André Luiz de Oliveira

José Carlos Vieira
postado em 04/03/2022 06:00 / atualizado em 04/03/2022 09:14