segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Primeiros moradores de Brasília contam do que mais sentem saudade

 

Primeiros moradores de Brasília contam do que mais sentem saudade

Encontros no Gilberto Salomão, espetáculos marcantes no Teatro Nacional e Michael Jackson no Ginásio Nilson Nelson. As primeiras décadas de Brasília foram marcantes e fizeram uma geração de pessoas terem a certeza de que a nova capital era mais do que um centro político: um verdadeiro lar

Talita de Souza

Há 62 anos, Brasília era inaugurada como a nova capital do país. Entre um presidente orgulhoso de cumprir a promessa eleitoral e centenas de trabalhadores que ergueram prédios e monumentos em tempo recorde, a história da cidade começava como uma folha em branco onde cada morador poderia escrevê-la junto com a nova capital. 

As primeiras décadas da cidade foram como a adolescência de qualquer um: ousada, cheia de descobertas e primeiras vezes. Foram os primeiros moradores e nascidos aqui os responsáveis por marcar a cidade com memórias e lugares que fizeram da capital um lar. De uma asa a outra, do lado de cá e do lado de lá do Lago, entre teatros que não existem mais e movimentos punks que marcaram a história nacional, o legado que a primeira geração da cidade deixou ressoa até hoje na cidade. 

Ao Correio, alguns estreantes da cidade lembraram como era a capital e revelaram do que mais sentem falta aqui. Confira!

De 6 km a pé para ver o Rei do Pop até ajudar o “primeiro” morador de rua Minha Brasília

Ginásio Nilson Nelson, nas primeiras décadas de Brasília. O local já era o point para receber shows e entreter moradores da cidadeA frase “quem quer dar um jeito” nunca foi tão adequada para definir um dos momentos mais marcantes da vida de Orlando Trindade, 61 anos, na capital. Morador de Brasília desde os seis meses de idade, Orlando lembra de um dos momentos que parou a história dele: um show de ninguém mais e ninguém menos que o Rei do Pop, em 1974. Na época, no entanto, Michael Jackson ainda era apenas um dos Jackson’s Five, grupo que tinha com os irmãos e que o revelou ainda na infância. 

Morador da 410 Sul, Orlando soube que a banda estadunidense que já havia aparecido de vez em quando na TV de tubo dele iria estar em Brasília, no Ginásio Nilson Nelson. O problema era que o show era muito caro e a turma aceitou que não poderia viver o momento. 

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Orlando Trindade desfrutou Brasília por completo: junto com os amigos ele andou 6 km a pé para ver um show dos Jackson’s Five

Mas a sorte mudou e, por um imprevisto, a banda não pôde chegar no dia marcado e a gestão do evento decidiu abrir o show para todos os moradores de Brasília. Essa foi a chance do grupo de amigos que, agora, só precisava superar um pequeno obstáculo: a distância de 6 km entre a quadra deles e o local do show. 

“Não tinha ônibus para lá. Eles abriram de graça para todo mundo e eu e minha turminha só pensamos em ir. Fomos a pé, da 410 sul até o Ginásio. Eu tinha acabado de machucar meu pé, mas a gente não pensava em nada disso, a gente só pensava em ir e ver o show. E a apresentação marcou a minha vida. Caramba! Que coisa maravilhosa! Eles ali, cantando, dançando, em inglês. Caramba! Um amigo meu teve que me carregar nas costas, mas foi incrível”, lembra Orlando, aos risos. No total, o grupo teve que percorrer 12 quilômetros a pé para viver o momento e voltar para casa. 

No entanto, esse foi apenas um momento de uma geração que, segundo Orlando, era viciada em viver e fazer viver. Prontos para tudo, poderiam dizer. Inclusive para um possível resgate. 

“Por volta da mesma época, o Correio e o telejornal da época deram a notícia de que havia um mendigo na cidade. Meus amigos e eu juntamos comida, roupas e saímos por Brasília inteira para achar e ajudar essa pessoa. A gente não achou”, conta. “Mas era comum a gente fazer aquilo. Hoje, a gente tem milhares de mendigos na cidade e ninguém tá nem aí para ninguém”, lamenta Orlando. 

Do acampamento dos construtores vieram os amigos e o amor eterno

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Oneide Soares escolheu Brasília para trabalhar, mas descobriu o amor. Ela e o marido se conheceram em um acampamento para construtores de Brasília. “Amor à primeira vista”

Um amor arrebatador. Oneide Soares, de então 19 anos, não imaginava que vir do Piauí com a família, para atender um desejo da mãe em conseguir mais trabalhos como costureira, iria fazer com que ela encontrasse o amor da vida dela, bem no meio de um acampamento improvisado para construtores de Brasília. 

Ela chegou à capital na década de 1970 e se instalou em uma espécie de quitinete na Candangolândia, no Acampamento dos Engenheiros, destinado a engenheiros, construtores e qualquer outro tipo de trabalhador que viesse para a construção de Brasília. 

Logo conheceu o vizinho, que veio de Minas Gerais. Ele contou que o irmão dele morava com ele na Capital, mas decidiu voltar. Quando ela viu José Roberto pela primeira vez, em 1980, teve a certeza que era alguém especial. Entre as ruas que não eram asfaltadas e apoiados nas paredes de madeira do Acampamento, os dois trocavam olhares, algumas conversas…

Por um ano inteiro, não se desgrudaram. “Éramos inseparáveis. Eu estudava à noite e ele me buscava. No tempo livre, íamos para o clube do grêmio, que era nossa diversão, a gente ia lá, de manhã era piscina e à tarde, churrasco. Íamos andando, não tinha tempo ruim”, lembra.  “Em outros domingos, a gente ia ao cinema, no Conjunto Nacional, mas só se a sessão acabasse antes das 22h, porque se não não teria ônibus para voltar”, conta aos risos. 

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O marido de Oneide, José Roberto, com o primeiro filho do casal, em frente à casa deles na Candangolândia, em 1982 | Foto: Arquivo pessoal

A rotina, no entanto, não era suficiente. Oneide e José Roberto queriam dividir uma vida juntos. “Um ano depois, a gente já estava casado. Foi amor. Amor à primeira vista. E amor que não coube só na gente. Em 1982, eu já estava ganhando meu primeiro filho”, conta emocionada. 

Juntos, os dois fizeram da casa deles e, do acampamento, uma espécie de grande família. “Todo mundo era amigo de todo mundo. Todos viviam na casa um do outro, não tinha isso de individualismo. Tudo era festa. A gente fazia festa junina, barraquinha, concurso de quadrilhas”, lembra com felicidade. 

Hoje, Oneide afirma que não imaginava viver uma vida tão boa em Brasília.  “E eu sinto falta. Hoje, todo mundo tem que trabalhar, trabalhar e trabalhar, e não tem tempo”, diz. Mas ela ainda afirma que a capital continua sendo um lar para ela, os filhos, os netos e para o grande amor da vida dela, José Roberto. “Estamos juntos até hoje, graças a Deus, né?”

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Oneide e os netos. A piauiense lembra com amor do começo da história da família dela em um Acampamento destinado para construtores de Brasília

Do Gilberto Salomão a entrar de penetras em festas

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Centro Comercial Gilberto Salomão, considerado o point dos jovens das primeiras décadas de Brasília |Foto: Arquivo Público do DF

Marco Jardim pode dizer que não só conhece a essência de Brasília, mas também é parte dela. O brasiliense foi um dos primeiros bebês a nascer na nova Capital, em novembro de 1960. O pai dele, de Diamantina (MG), veio para a cidade em 1959, um verdadeiro pioneiro. 

É com esse espírito desbravador, herdado dos pais, que Marco viveu os primeiros anos da vida dele. Desde cedo, é apaixonado por conhecer todos que cruzam o caminho dele. A missãonunca foi muito difícil, já que na mesma época ele lembra que todos tinham o mesmo pensamento. 

“Até entrar de penetra a gente entrava. Se a gente estava na 111, conversando com as pessoas, sabíamos que tinha uma festa na casa de alguém na 113 e a gente ia, empolgado, chegar até lá e tentava entrar de penetra”, lembra aos risos.

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Um dos primeiros a nascer em Brasília, em novembro de 1960, Marco Jardim lembra que o Gilberto Salomão era o point da época, onde conheceu vários amigos — e cultura também

“Sexta, sábado e domingo era o Gilberto Salomão, o point da época. A gente sentava com todo mundo e sempre conhecia gente nova”, lembra Marco.  Para ele, a maior riqueza de Brasília é conviver com diferentes culturas. 

“Eu sentava em uma mesa com três, quatro pessoas e perguntava de onde eram. Numa mesma mesa tinha quatro estados, quatro culturas e a troca de conhecimento era enorme. Isso é riqueza”, lembra, empolgado. 

“É um privilégio conviver com pessoas diferentes e eu sei que não teria isso em outros lugares do Brasil. Eu até brincava que eu era mineiro, gaúcho, paulista, porque na época o brasiliense não tinha uma identificação própria, nós éramos todos”, conta. “Essa vivência de comunidade, de todos se conhecerem, é o que eu sinto mais falta”, suspira.

O teatro que apresentava o Brasil, o mundo, e marcava vidas

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Teatro Nacional de Brasília, nos anos 80. O local recebeu grandes artistas e espetáculos e deixou saudades para os brasilienses que amavam arte

Do interior baiano, Antonilia Marra sempre aspirou descobrir o Brasil além dos limites de Barreiras (BA), uma cidade que, na década de 1960 oferecia apenas um viés da agricultura. Por esse motivo, quando ela viu que a tia e duas irmãs dela viriam a Brasília, logo avistou uma oportunidade de encontrar um novo lugar para alcançar o que ela nem mesmo sabia na época: viver a plenitude do mundo, da cultura e da poesia.

“Na minha cidade, dependia muito de agricultura, não tinha outras oportunidades. Minha vida ia ser muito diferente lá e eu tinha uma ambição de não ficar na mesmice, queria crescer. Apesar de não ter muito conhecimento do que era aqui, eu queria e precisava fazer algo para viver outras coisas”, lembra.

Ela contou ao pai que a cidade era uma oportunidade de trabalho e, apoiada por ele, chegou à capital aos 16 anos, em 1976. Logo Antonilia se encantou com o design da cidade, os ares modernos e “o clima super agradável”.

Entre passeios no Parque da Cidade e no Conjunto Nacional, ela se satisfazia em ver que a vida poderia ser mais do que só trabalho. No entanto, foi apenas quando pisou no Teatro Nacional que teve a certeza de que encontrou o que buscava: um lugar que a levaria a conhecer o mundo e a ser inspirada pela arte. 

“Era o lugar que eu mais gostava de ir. Era uma oportunidade de ver coisas novas, de descobrir o mundo. Eu não conhecia cultura e ali eu vi muitos espetáculos. Era um outro mundo”, conta, emocionada. 

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Antonilia Marra diz que encontrou em Brasília a chance de viver o mundo em plenitude: cultura, arte e novas oportunidades

Cerca de 42 anos depois, Antonilia ainda se lembra do dia em que a vida dela foi marcada naquele Teatro. Ela assistiu ao espetáculo A Chorus Line, no qual Claudia Raia protagonizava uma história de superação de um grupo de artistas que corriam atrás do sonho de estrelar na Broadway.  

“Era um musical, uma versão de um espetáculo americano. Foi muito bonito e uma mensagem muito forte. Me marcou demais”, lembra Antonilia. O espetáculo também marcou a carreira da atriz Claudia Raia: aos 16 anos, ela estreou nos palcos com a obra, que marcou o começo de uma nova era dos musicais brasileiros. 

Além de Cláudia, Antonilia assistiu a Chico Anísio e outros grandes atores da época. Ela lembra que o teatro também era palco de diversas exposições, até mesmo de plantas. 

“A cada seis meses, no saguão, tinha uma enorme feira que ficava lá. Era uma oportunidade de conhecer mais coisas e por isso eu gostava muito”, lembra. Apesar do fechamento do Teatro, Antonilia afirma que “Brasília ainda é o melhor lugar para morar, trabalhar, estudar, viver e constituir família”.

“A energia de Brasília não tem igual. Eu já fui para vários estados do Brasil, observo as pessoas e as cidades e é muito diferente. Aqui, as pessoas cuidam de onde moram, são conscientes e têm um bom convívio”, finaliza.  

Dos dias de pesca no Paranoá para os de carona até o heavy metal

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A Concha Acústica, palcos de grandes shows, foi também uma casa aberta para os movimentos de heavy metal

“Eu tive a infância e a adolescência mais felizes do mundo”, declara, empolgada, Rosane Galvão. Hoje com 51 anos, a brasiliense diz ter certeza de que em nenhum outro lugar, a não ser em Brasília, ela teria a oportunidade de viver tão bem. 

Criada no Lago Sul, Rosane e a família moravam na QI 19. “A rua era descalça, só tinha duas casas, não tinha nenhuma das pontes ainda e ali fizemos um lar. Meus pais eram perfeitos, eles nos ensinaram a viver”, lembra a taquígrafa.

Com os quatro irmãos e os pais, a família fez do Lago Sul um mundo deles. Amavam ir até o Lago Paranoá pescar, aproveitavam a água da chuva para curtir uma “piscina” e inauguraram o primeiro clubinho de futebol do local. “Papai gramou um lote do lado de casa, chamou os moradores do Lago e fez até carteirinha. Era muito divertido”, lembra Rosane. 

Na adolescência e no início da juventude, a brasiliense passou a explorar a cidade do outro lado do Lago. “A gente não conseguia ficar em casa. Queríamos sair, sempre. Viver o encontro, o presencial, o olho no olho. Viver”, declara. Nem mesmo a falta de carro a atrapalhava. “Minha irmã e eu íamos para a pista, colocava o dedo pra fora e pegava carona para ir para o Plano. Tudo era carona para irmos aonde queríamos. O importante era ir para a rua”, lembra. 

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Rosane Galvão foi uma das fiéis brasilienses que viveram a juventude engajada em um movimento: ela era baixista em uma banda de heavy metal só de mulheres, a Flâmia

Assim como Rosane, outras centenas de jovens procuravam todos os cantos de Brasília para ocupar e deixar com a cara deles. Foi assim que nasceram os diversos movimentos musicais, principalmente o heavy metal, paixão de Rosane. 

Estudante da Escola de Música de Brasília por sete anos, ela foi convidada a tocar em uma banda só de mulheres em 1987, onde tocava baixo. “A Flâmia é, tenho quase certeza, a primeira banda de heavy metal só de mulheres do Brasil”, conta, orgulhosa.

De sobrelojas na Asa Norte até as cidades do Entorno, a banda divertiu outros amantes do estilo musical. “A gente reunia muita gente, nós vivemos tudo o que poderíamos viver. Desde rixas entre os punks, metaleiros e carecas, tentativas de sabotagem de uma banda que a gente era ‘inimiga’ até a apresentação na Concha Acústica”, lembra. 

Nos anos 2000, Rosane integrou a Rarabuchuebas, onde era a única mulher. Ela lembra que a banda tocou nos grandes festivais de rock da capital, como o Brasília  Fest Rock e o Gran Circo Lar, que não existe mais. 

A brasiliense guarda na memória e ainda hoje toca, ao lado das filhas, músicas de rock. Ela diz ter saudade da efervescência da capital e a prioridade que todos tinham em estar juntos. 

“Brasília tinha a ver com movimento e contato físico. A gente era solto na cidade, a gente vivia muito. As pessoas eram mais tolerantes. Hoje é inimaginável você fazer uma banda para tocar em uma sobreloja, ninguém ia aceitar ouvir. Antes, as pessoas eram mais tolerantes e tinham respeito pela energia e vitalidade da juventude. Eu lamento pelas minhas filhas, que não vão viver o que já vivi um dia”, lamenta. 

No começo, tudo era poeira: a amizade que acompanhou Brasília crescer

No começo, tudo era poeira: a amizade que acompanhou Brasília crescer

Em meio a máquinas pesadas, vizinhos de todas as regiões e muita esperança, o crescimento da cidade era acompanhado pelas amigas Maria Elisa e Suely de Roure Maria Elisa e Suely em frente ao Bloco D da 106 Sul: histórias compartilhadas

Por entre os galhos secos e tortuosos do Cerrado, em 1960, o Brasil ergueu uma nova capital. Àqueles que chegaram no início de tudo, restava abrir-se para o novo e construir laços numa cidade empoeirada e ainda quase deserta. Em um mesmo prédio residencial, cheio de desconhecidos vindos de várias regiões do país, havia a possibilidade de novas relações. Esse foi o caso de Suely de Roure e Maria Elisa Stracquadanio, que dividem o mesmo pilotis desde meados dos anos 1970.

Para a carioca Maria Elisa, 71 anos, servidora pública aposentada, a poeira da cidade e as lembranças se misturam. Com a mãe transferida para a nova capital em 1960, a então garota de 8 anos lembra-se de de ficar diante de um projeto de cidade tomado pelo solo escavado e com a terra vermelha à mostra. No primeiro dia, a família composta por mãe e filha se deparou com um apartamento vazio. A mudança havia se perdido no caminho. Com o frio que assolava a cidade naqueles invernos secos dos anos de 1970, e sem muitos prédios levantados para frear o vento, o jeito foi alojar-se dentro do guarda-roupas embutido para passar a noite. A história que se seguiu nos 62 anos de Brasília, contudo, se provaria muito mais calorosa.

No caso da paulista Suely, 74 anos, professora aposentada, o calor ardia. Moradora da Cidade Livre, local criado para abrigar os primeiros trabalhadores que erguiam Brasília e que viria a se tornar o atual Núcleo Bandeirante, ela conta que, por ser construída à base de madeira, a cidade sofria com incêndios. O temor pela segurança dos filhos tomou conta da mãe de Suely, que resolveu levar a família para Goiânia. Alguns anos se passaram até que ela decidisse dar uma segunda chance à nova capital. Desta vez, na 106 Sul, a mãe encontraria, na sombra atípica de um pinheiro, o frescor da tranquilidade e um local para que Suely chamasse de lar.

A menos de um ano da inauguração de Brasília, Juscelino Kubitschek havia cortado a fita do primeiro prédio residencial da cidade. O bloco “D”, da quadra 106 Sul, estava pronto e preparado para que, pouco mais de uma década depois, em 1975, a dupla desse início à duradoura amizade. Suely viu Maria Elisa constituir família e rememora os filhos e netos dela baterem à porta no dia de Cosme e Damião para pedir doces; Maria Elisa viu Suely crescer na Secretaria da Educação e, por amor, tomar a frente do prédio como síndica. Ela pode ser encontrada na pequena saleta ao lado da portaria. Maria Elisa diz, em tom de brincadeira, que o cargo é vitalício por direito.

Recepção

Quando juntas, as duas divagam por uma gama de assuntos de forma fluida. As questões da idade são intercaladas por memórias de 40 anos contadas com a precisão de quem as viveu semana passada. Das piadas aos assuntos sérios, não há meias palavras. A dupla detém, de cor, o mapa dos apartamentos distribuídos no corredor de cobogós. O nome dos moradores atuais, bem como os antigos, está na ponta da língua. Basta dizer os três dígitos referentes ao apartamento. Os moradores vindouros, claro, são muito bem-vindos e recebidos com flores e comida, como de costume.

A intimidade, porém, é uma via de mão dupla. Com quatro décadas de amizade, Maria Elisa e Suely têm abertura suficiente para discordarem, o que traz um tempero a mais nas reuniões de condomínio. Com posições, às vezes, distintas, as duas confessam que o clima pode esquentar. Tudo pelo bem comum, que é o amor pelo local que elas, há tanto, habitam. É claro que, do salão de reuniões para fora, reina o amor que elas construíram ao longo do tempo. Não demora e a dupla já está compartilhando confissões, pomadas e canjica mais uma vez.

Pedro Almeida*

*Estagiário sob a supervisão de José Carlos Vieira


sábado, 26 de novembro de 2022

Veja as reclamações “curiosas” sobre Brasília na década de 1960

 

Veja as reclamações “curiosas” sobre Brasília na década de 1960

O Correio estava lá quando a cidade nasceu e em todos os anos seguintes. O jornal serviu de apoio aos novos moradores reivindicarem as mais urgentes — e curiosas — necessidades da época

Falta de iluminação que dava um lugar para que casais promovessem “escândalo” no escurinho da superquadra 107, uma cadela raivosa mas com um dono “muito mais perverso” que fazia os cabelos dos moradores da quadra 17 se arrepiarem, e a falta de variedade no cardápio de um restaurante perto da Igrejinha eram algumas das variadas e curiosas reclamações recebidas pelo Correio no quadro Coluna do leitor, em abril de 1962. 

Há apenas dois anos do nascimento da capital, os poucos moradores que apostaram em Brasília e vieram doar as vidas para o projeto e para o futuro da cidade não perdiam tempo ao exigir melhorias. Com tom de seriedade, irritação e até mesmo deboche, os candangos rechearam as páginas do jornal com o que eles desejavam que fosse notícia: uma capital melhor e digna para todos. 

Confira uma seleção dessas reivindicações preparada pelo Correio em comemoração aos 62 anos de Brasília:

Comida “racionada e intragável”

Em uma terça-feira de abril, no dia 3 daquele mês em 1962, a página 6 do Correio recebeu uma reclamação deveras válida: um trabalhador que não aguentava ter a principal refeição do dia composta por alimentos “racionados e intragáveis”. 

Reinaldo J. Vieira foi o dono da reclamação contra o restaurante Americana, localizado, à época, perto da Igrejinha de Nossa Senhora de Fátima. O homem afirma que a comida era servida no prato e, por isso, era feito como os donos desejavam — a contragosto de Reinaldo. De acordo com ele, o menu da casa não era variado, era sempre “um pouquinho de arroz, feijão preto e dobradinha”. “A comida que servem aos fregueses, além de ser racionada, é intragável”, disse na carta.

De acordo com o reclamante, a falta de variedade e o fato de ser “pouco substanciosa” torna a comercialização do restaurante uma “exploração e caso de polícia”. “Convenhamos, é exploração e caso de polícia. Urge, portanto, providências adequadas das autoridades competentes”, concluiu ele. 

Dois dias depois, mais uma vez a página 6 foi tomada por uma carta do senhor Reinaldo, que parecia ser um guardião do paladar dos trabalhadores brasilienses da época. Em 5 de abril de 1962, a reclamação se dirigiu ao restaurante do Grupo de Trabalho de Brasília (GTB), órgão responsável pela construção de prédios habitacionais na capital. 

Nesse, Reinaldo provou o que ele chamou de “arroz sem tempero” e um “feijão mal preparado”. A carne? Não tinha. “A comida vem piorando dia a dia, pois, antigamente ainda era servido o bife, mas agora deixaram de servir esse insubstituível prato”. 

Correio se pergunta se Reinaldo conseguiu tornar os horários de almoço dele e dos colegas em um período agradável e saboroso. Esperamos!

Cadela perigosa, dono perverso: o terror da Quadra 17

Imagina não poder circular pelas ruas da quadra em que mora porque a qualquer momento uma cadela pode te atacar sem motivo ou, ainda, a mando do próprio dono? Essa era a realidade vivida em abril de 1962 pelos moradores da Quadra 17, de acordo com Luiz Fernando Alves. O homem escreveu ao Correio para pedir às autoridades “providência” para o caso. 

De acordo com Luiz Fernando, a cadela, que é descrita como muito bonita, vivia solta pela quadra e sempre atacava as pessoas do local. O temperamento da cachorrinha também era utilizado pelos interesses do dono, classificado como “muito mais perverso” que o animal.

Luiz afirma que o tutor da cadela obrigou-a a atacar “um grupo de rapazes” que conversavam na quadra. Ele pedia que a polícia e outras autoridades intervissem para que o fato não se repetisse e para que “crianças inocentes não sejam também mordidas”. 

Um galinheiro e uma bananeira: a receita para estressar vizinhos

A vizinhança do Bloco 5 da Superquadra 412 era uma calmaria até o momento em que um deles teve a ideia de cultivar um galinheiro em frente à entrada em que mora, em um espaço que era destinado ao jardim do bairro.

A carta, feita pelos moradores indignados, dizia que o homem tinha “a mania de fazendeiro” e chegou a plantar uma bananeira no local, além de alguns legumes e outras coisas em frente ao apartamento dele.

Os vizinhos insatisfeitos pediam que as autoridades fizessem algo para acabar com o “cocoricó” das galinhas, com a justificativa de que a pequena fazendinha do homem prejudicava “completamente o plano urbanístico da cidade”.

Lambretista abusado na 409 tira o sossego dos pais da quadra

A coluna do leitor de domingo, 15 de abril de 1962, trouxe uma história um tanto curiosa, digna de reality shows que tratam sobre problemas entre familiares e vizinhos. Tratava-se de uma reclamação dos moradores do Bloco 29 da Superquadra 409, que reclamavam do que chamaram de “um abusado lambretista” que passeava pela calçada do local “sem respeitar quem ali passa”. 

Imprudente, o lambretista foi acusado de “quase matar um menor”, chamado de Francisco da Cunha Filho, de 4 anos, que brincava na entrada do apartamento em que morava. Além de quase causar o acidente, o lambretista “ainda achou-se no direito” de ir até a casa da criança e falar para o pai não deixá-la em frente à casa porque era o local onde ele passava com a lambreta. 

Na carta, os moradores apelaram ao então chamado Serviço de Trânsito da capital para “que baixe determinação com a finalidade de coibir abusos dessa ordem”. Será que a sagaz lambreta recebeu uma multa? 

Mulher despejada sem estar em casa perde herança de família

Uma moradora da Superquadra 412 usou a Coluna do Leitor para denunciar o despejo dela, que lhe custou mais do que um lugar para morar. Em 19 de abril de 1962, a carta de Elza Ramos contou o drama que viveu. Ela havia sido despejada há dois meses do apartamento em que morava na 412, enquanto trabalhava. Quando chegou em casa, além de não ter acesso ao local, não sabia onde estavam todos os móveis. 

A saga de Elza para encontrar as suas mudinhas de roupa e o restante dos bens durou dois meses, até que os encontrou. O problema é que a ex-moradora da Superquadra 412 diz ter perdido diversas jóias, roupas de cama e ate mesmo uma radiola, “de alta fidelidade”, que “ficou inteiramente estragada”. 

No entanto, há um objeto que Elza fazia questão de reaver: um crucifixo, herança de família. Na carta, ela reclama de ter sido furtada “numa terra de gente civilizada” e que o que ocorreu com ela, os móveis e os bens “é obra de pessoas sem princípio, indigna de funcionar como servidores de um órgão judiciário, que tem obrigação de dar bom exemplo”.  

Na reclamação, ela se dirige diretamente ao Juiz da Primeira Vara da Fazenda Pública, que emitiu a ordem de despejo, “para que tome uma providência enérgica para punir os culpados” e fazer com que o crucifixo apareça. 

Pombal inacabado? Leitor confunde traço artístico de Oscar Niemeyer

Reclamação pombal inacabado
Leitor reclamou do Pombal criado por Oscar Niemeyer para a Praça dos Três Poderes

Em 24 de abril de 1962, dois dias após Brasília completar dois anos, o leitor Darcy Viana trouxe uma reclamação que, hoje, pode ser vista como uma crítica ao trabalho de Oscar Niemeyer. O morador do Bloco 6 da Superquadra 409 afirmava que o Pombal da Praça dos Três Poderes, erguido e inaugurado em 1961 durante o governo de Jânio Quadros, estava inacabado. 

Ele afirmava que as autoridades tinham duas alternativas: “Ou se retira aquela coisa horrível que o governo de Jânio Quadros construiu (a única obra que fez em Brasília) ou então se termina dando-lhe a complementação digna da suntuosidade da Praça dos Três Poderes”. Darcy ainda chamou a obra de um dos arquitetos mais renomados do mundo de “monstrengo” que enfeia a paisagem do local. 

O Pombal, na verdade, não estava inacabado. Ele foi inaugurado em 1961, pronto, logo após a primeira-dama, Eloá Quadros, fazer o pedido para Niemeyer. Ela dizia que todas as praças deveriam ter pombos — o Pombal é uma maneira de atrair pombos para o local.

De acordo com historiadores, Niemeyer não gostou da ideia, por achar que a praça deveria continuar plana, ou seja, sem nenhum outro monumento no meio dela. Mas precisou atender o pedido “irrecusável”. Fato engraçado: a obra é conhecida por alguns brasilienses como “prendedor de roupa”. 

Mosquitos causam insônia aos moradores da 206

Maria Pereira dos Santos não aguentava mais perder noites de sono quando decidiu escrever uma reclamação ao Correio, que foi publicada em 27 de abril de 1962, uma sexta-feira. Moradora do bloco 1 da Superquadra 206, ela afirma que uma “onda de mosquito” ronda o local, insetos “tão fortes e violentos que impedem o sono dos habitantes do edifício”.

Maria ressalta, na carta, que os mosquitos podem ter relação com “fossas anti-higiênicas” que ainda existiam no local. Por fim, ela pedia que as autoridades corrigissem o problema, porque “não se justifica que numa cidade com todos os recursos da técnica moderna, seus moradores tenham seu sono cortado por uma onda perturbadora de mosquito”. 

Asa Norte preterida? Morador reclama de falta de bancas

Considerado um dos locais com melhor qualidade de vida de Brasília, a Asa Norte parece não ter sido sempre preferida pelas autoridades locais na década de 1960. Pelo menos não para Meyer Wakimin, morador do Bloco 16 da Asa Norte, que escreveu ao Correio em 11 de abril de 1962 para reclamar que “as autoridades, decididamente, não dão a menor importância pela sorte dos que vivem no conjunto residencial”. A revolta de Meyer é a falta de bancas de jornal.

“Por que a Novacap só não construiu Banca de Jornaleiros na Asa Norte?”, questionou o morador. O homem afirma que “não há motivo justificável” para a inexistência desses estabelecimentos que promoviam a comercialização de jornais, revistas e outros itens de conhecimento e entretenimento dos moradores. 

“Em outros conjuntos residenciais, menos populosos, foram construídas bancas dotadas de todos os requisitos modernos.” Será que o seu Meyer conseguiu ter a oportunidade de comprar o jornalzinho diário pela manhã perto de casa, antes de ir ao trabalho?

Leitor pede que polícia limite uso de “farol alto”, que causou acidente

Leitor reclama de farol alto
Leitor reclama de farol alto

Em 15 de abril, foi publicada a reclamação de Marcelino Luís de Oliveira, que registrou a insatisfação pessoalmente na redação do Correio, no SIG. O morador da Quadra NE 30 denunciou o uso da luz do farol por motoristas que atrapalham os “colegas” que andam no sentido contrário da avenida. 

Na quinta-feira anterior ao domingo em que registrou a reclamação, Marcelino conta que atropelou um garoto após “perder a visão” quando um carro o ultrapassou com farol alto. O fato, que deixou Marcelino indignado, fez com que, além de uma reclamação no jornal, ele organizasse um abaixo-assinado para “solicitar das autoridades um providência contra tais abusos a fim de evitar outras vítimas nas estradas”. 

Falta de luz promove um lugar para “amantes” se encontrarem

Nada de encontros “apaixonados” na Superquadra 107! Para Walter Luís, morador do bairro, a falta de iluminação no local não trazia insegurança, mas sim propiciava um ambiente para que casais “promovessem escândalos”. A reclamação dele, publicada em 1º de abril de 1962, pedia para que as autoridades tomassem “uma providência enérgica a fim de colocar um ponto final nesta irregularidade”. 

Todas as histórias retratadas aqui foram retiradas do Centro de Documentação (Cedoc) do Correio Braziliense, que se orgulha de fazer parte da história de Brasília!