segunda-feira, 17 de abril de 2017

A SOLIDÃO DIVIDIDA EM BLOCOS

A SOLIDÃO DIVIDIDA EM BLOCOS

Escrito por Brasília Poética em . Postado em Naqueles dias...
A SOLIDÃO DIVIDIDA EM BLOCOS
Poucas cidades no país produziram uma juventude tão crítica e irônica em relação ao cotidiano – e isso é saudável
Por Sérgio de Sá 
 
Há cinqüenta anos, a cidade artificial procura encontrar uma identidade que lhe seja natural. "Nós queremos ação! Acabar com o tédio de Brasília, essa jovem cidade morta! Agitar é a palavra do dia, da hora, do mês!", gritava Renato Russo, com todas as exclamações possíveis, no fim dos anos 70, quando era voz e baixo da banda punk Aborto Elétrico. Em meio à burocracia oficial, o rock ocupou o espaço urbano, os parques, as superquadras de Lúcio Costa, cresceu e apareceu. Foi a primeira manifestação cultural coletiva a dizer ao país que a cidade existia fora da Praça dos Três Poderes e que, além disso, estava viva.
Na década de 80, Legião Urbana, Capital Inicial, Plebe Rude, Detrito Federal e outros grupos, de nomes antes esquisitos e hoje nacionalmente sonoros, bagunçaram o coreto de um lugar exageradamente controlado, recém-desembarcado de uma ditadura militar próxima demais no tempo e no espaço. Depois de vinte anos de sufoco, no período pós-1964, e já com a chegada da anistia, Brasília respirou aliviada e seus filhos – poucos de sangue, muitos adotivos – puderam afirmar sem medo, mas com ironia e autocritica: "Somos os filhos da revolução, somos burgueses sem religião, somos o futuro da nação, Geração Coca-Cola", também nas palavras do onipresente Renato Russo.
O atormentado líder da Legião Urbana, nascido em 1960 como Brasília – mas na Velhacap, o Rio -, inventou outro mundo para animar a adolescência brasiliense. Transformou o cotidiano aborrecido em poesia. Algo diferente do que, no Rio de Janeiro, fizeram João Gilberto, Tom e Vinicius com a bossa nova, no fim dos anos 50, retrato musical do prazer de viver à beira-mar, trilha sonora do bem-estar.
O movimento candango, no grito e em acordes também dissonantes, resumiu a vontade que cerca a história da cultura na capital federal: apagar traços da ocupação militar, escapar da comodidade das repartições públicas, amenizar a pecha de lugar de corrupção e bandalheira, de endereços sem alma, formado por letras e números. Numa versão nunca gravada de Tédio (com um T Bem Grande pra Você), Renato Russo escreveu: "Tudo numerado é legal mas enche o saco".
"SQS ou SOS", eis a questão resumida pelo poeta Nicolas Behr, representante brasiliense da chamada turma do mimeógrafo, de bar em bar vendendo seus livrinhos. Se Leo e Bia, o casal criado por Oswaldo Montenegro em 1973, viviam no centro de um planalto vazio, "como se fosse em qualquer lugar", Eduardo e Mônica descobriram outro roteiro, menos etéreo, mais real. Como os personagens da música da Legião Urbana, a cidade se encontra no Parque da Cidade, anda de camelo, toma conhaque, faz magia e meditação. Esbarra, assim, num cotidiano aparentemente igual ao das outras cidades. Mas talvez apenas esbarre, porque a vida em Brasília é realmente diferente, inclassificável.
"Brasília não é um lugar qualquer", resume o ator Adriano Siri, da Cia. de Comédia Os Melhores do  Mundo, sucesso de bilheteria em todo o país. "Tem esse propósito inicial de abrigar poderes, autoridades, embaixadas, mas, ao mesmo tempo, traz algo nas características urbanas que nos diferencia. A cultura, naturalmente, deixou-se marcar por isso." Ele lembra que Brasília, como nenhuma outra cidade brasileira, concentrou gende vinda de todos os lugares e que uma tradição ainda está por se constituir – a cidade é jovem demais para contar uma história. "Em nossos espetáculos, conseguimos fazer humor com as realidades regionais sem forçar a barra", afirma Siri. Cinqüenta anos, em qualquer cronologia urbana é muito pouco tempo.
Caipirice. Não se pode dizer que Brasília, aos 50, seja apenas a cidade de Lucio Costa e Oscar Niemeyer. "Não podemos esquecer da tradição e da vida anterior ao concreto, do sertão e sua cultura", afirma o violeiro mineiro-brasiliense Roberto Corrêa. Brasília, portanto, alia a saudável caipirice de origem (não confundir com a breguice sertaneja que a cidade abarcou, em especial nos doze anos de governo Joaquim Roriz) ao cosmopolitismo que nasce do casamento do modernismo arquitetônico com uma população de alto poder aquisitivo, viajada.
Em Renato Russo: o Filho da Revolução (Agir), o jornalista Carlos Marcelo mostra como o líder da Legião Urbana e as turmas que gravitavam na esfera do rock foram os primeiros adolescentes a poder assumir sem medo a identidade da cidade em construção, com todas as suas inquietações e imperfeições. "Nas composições iniciais, no fim dos anos 70, Renato Russo utilizou a estética e sonoridade punk, que tinham acabado de surgir na Inglaterra e nos Estados Unidos, para amplificar o impacto das letras que escrevia sobre a situação política do Brasil e do que observava no cotidiano da capital", afirma Marcelo. "Essa mistura em iguais proporções de ingredientes cosmopolitas e nacionais é bem característica da juventude brasiliense daquela época."
Para o jornalista, a angústia resumida nas letras do roqueiro é a tradução das dores de parto e do crescimento da cidade. "Elas captaram a atmosfera daquele tempo, entre o fim do regime militar e a democratização, como se fossem polaroides", diz. Para Carlos Marcelo, "Renato foi o primeiro a cantar, com todas as letras, a angústia de morar numa cidade sufocada, de estar cheio de se sentir vazio", completa, numa referência a trecho da letra da canção Baader-Meinhof Blues, uma das tantas que misturavam estado de espirito com o desenho urbano.
O mundo, naqueles dias dos anos 70 e 80, andava mesmo complicado. Para levantar a poeira da inércia bem acomodada na tranquilidade planejada das superquadras, a arte do rock encontrou Brasília, ao mesmo tempo em que, inevitavelmente, estabelecia uma mirada estrábica: um olho nos pilotis e nos cobogós, outro nas informações que circulavam mundo afora. Com baixo, guitarra, bateria e um plugue na tomada de Londres ou Nova York, partiu para a ação debaixo dos blocos, como são chamados os edificios residenciais no Plano Piloto de Lucio Costa.
Dos gramados abertos brasilienses às salas esfumaçadas do Rio ou de São Paulo, foi um pulo, ou melhor, um mosh, como os punks definem o salto do músico aos braços da platéia, num movimento de euforia, mas arriscado. As bandas desembarcavam com um poderoso cartão de visita: "somos de Brasília", como quem dizia "somos de Manchester", o que significava som de qualidade, pulsante, novo – e muito barulho. O reconhecimento colou inclusive na geração posterior, a de Raimundos, Maskavo e Natiruts, já nos anos 90.
Faroeste caboclo. Brasília, descobriu-se, tinha carne e osso – e se tinha ambos é porque também tinha alma, embora quese sempre fosse melancólica. "A superquadra nada mais é/do que a solidão dividida em blocos", lugar em que "burocratas de verdade só fazem amor/em almofadas de carimbo", escreveu o poeta Behr. Outras vezes, além de triste, foi raivosa. Havia uma saída, e ela não era o aeroporto, como manda um chavão ainda hoje insistentemente repetido. "Meu Deus, mas que cidade linda!", gritavam e gritam os brasilienses em coro e com orgulho no verso de Faroeste Caboclo, a enorme e irônica narrativa da Legião, prestes a se transformar em filme. "E num ônibus entrou no Planalto Central/Ele ficou bestificado com a cidade/Saindo da rodoviária viu as luzes de Natal/ – Meu Deus, mas que cidade linda."
"Ainda não há um modus operandi para lidar com Brasília, mas ela sempre mostrou disposição de olhar para fora", diz o cineasta José Eduardo Belmonte, diretor de Se Nada Mais Der Certo, vencedor do Festival do Rio em 2008. "Esse diálogo existencial com o mundo é uma característica bem brasiliense." Paulista de nascimento, Belmonte passou a adolescência na capital federal. "Meu último filme foi eleito em São Paulo, mas é tão brasiliense quanto os outros. Capta um espaço abstrato, irreal, em que a cidade aparece de modo difuso, quase apenas um conceito."
Normalidade inexistente. Talvez seja a mesma Brasília da canção homônima dos Paralamas do Sucesso, trio que confunde sua origem entre o Rio e o Distrito Federal, porque Herbert Vianna e Bi Ribeiro começaram a tocar por lá. Na letra de Herbert, tudo é igual e estranho, mas os monumentos, os palácios, as avenidas, os eixos não são nomeados. "Quartos de hotel são iguais/Dias são iguais/Os aviões são iguais." A cidade, na canção, não existe. Na capital política, dar nomes é sempre um risco. Pode comprometer.
Entre o concreto e o abstrato, Brasília continua a buscar uma normalidade inexistente. Mas "ainda é cedo", diz o refrão de Renato Russo. Para a cinqüentona Brasília, paradoxalmente adolescente, há muito a aprender. Ela não tem os 444 anos do Rio de Janeiro, tampouco os 455 de São Paulo. A música urbana foi – e continua sendo – uma forma de fugir da frieza da cidade recém-nascida.
Há exatos 25 anos, quando a Legião Urbana lançou seu primeiro disco (Legião Urbana), ela também tornou nacionalmente visível a impossibilidade que o artista brasiliense tem de fugir da maquete, mesmo quando há ímpetos de destruí-la. No encarte do velho vinil, a cidade aparece nos traços do baterista Marcelo Bonfá. Os quatros integrantes da banda são como gigantes que deixam rastros para sempre marcados no solo seco do cerrado, no rabisco de Lucio Costa ocupado pelas obras de Niemeyer. Eram desenhos aparentemente ingênuos, mas ajudavam a mostrar o que a juventude brasiliense pensava de si mesmo, e sua relação com o traçado urbano. Brasília ainda não sabia o que era e talvez ainda não saiba – mas é certo que já produziu uma cultura só dela, saudavelmente critica e nada indulgente.
 
Sérgio de Sá , jornalista e professor da Universidade Católica de Brasília, é neto de Bernardo Sayão, pioneiro de Brasília.
Texto transcrito da Revista Veja (2138), Edição Especial "Brasília 50 anos", novembro de 2009.

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