'Vale Tudo'? Jovens estão trocando a televisão pelos creators do TikTok
Odete Roitman (Debora Bloch) em 'Vale Tudo': novela é aposta da TV Globo, mas público jovem está mais nas redes sociais Imagem: Reprodução/GloboEsqueça aquele filme de cinema, ou o episódio super bem produzido da série do momento. Ou mesmo o mais novo lançamento da TV Globo, a novela "Vale Tudo". Os mais jovens, hoje, preferem conteúdos audiovisuais de curta duração dos criadores e influenciadores que estão no TikTok, Instagram e YouTube. É o que aponta a pesquisa anual Digital Media Trends da Deloitte, divulgada recentemente —para desespero de Hollywood e dos canais de televisão tradicionais.
"Enquanto os estúdios e os provedores de streaming estão ocupados competindo entre si, uma ameaça mais acirrada vem das plataformas de vídeo social que são hiperescaláveis e hipercapitalizadas", diz o texto, assinado por seis pesquisadores.
Segundo o estudo, 56% dos jovens da Geração Z (nascidos entre 1996 e 2010) e 49% dos Millennials (entre 1981 e 1996) afirmaram que os conteúdos das redes sociais são mais relevantes do que os da TV tradicional ou do cinema, além de sentirem uma conexão mais forte com os criadores —os creators e influencers, como são mais chamados— do que com apresentadores e atores.
Os dados são relativos aos Estados Unidos, mas, mesmo considerando as particularidades entre as culturas e economias, podemos ver algo semelhante ocorrendo no Brasil.
Norte-americanos consomem cerca de seis horas de mídia por dia, em média. Desse tempo, cerca de 1,4 hora é gasta com streaming, enquanto outra 1,4 hora é utilizada para assistir TV linear por cabo ou internet. Apenas 54 minutos ficam com as redes sociais.
Porém, quando analisamos o recorte geracional, a diferença no consumo de mídia fica evidente, revelando uma outra preferência. A Geração Z passa mais tempo consumindo conteúdo (6,9 horas diárias), mas dedica menos tempo ao streaming (1,3 hora) e à TV (0,8 hora, ou48 minutos), enquanto o uso de redes sociais sobe para 1,4 hora (84 minutos). Já os Millennials, atualmente na faixa dos 30 e 40 anos, consomem 6,3 horas diárias de mídia, com uma hora e meia de streaming, 54 minutos de TV e 1,1 hora (66 minutos) em apps como Instagram e TikTok.
"Olhando para todas as gerações, as preferências entre os entrevistados parecem estar mudando da TV paga para serviços de streaming de vídeo, plataformas de vídeo social e jogos", afirma a Deloitte. A conclusão não é surpreendente, mas tangibilizar em números revela o ritmo dessa migração.
Streaming mais caro
Mesmo liderando sobre os concorrentes tradicionais, o streaming enfrenta desafios. Segundo o estudo, 41% dos consumidores consideram o conteúdo caro para o que oferece. Além disso, 47% acham que gastam demais com serviços do tipo. O valor total médio das assinaturas subiu de US$ 61 (R$ 346, na cotação atual) para US$ 69 (R$ 392) por mês, refletindo o impacto da inflação no orçamento dos norte-americanos.
Mr. Beast (Jimmy Donaldson), dono do maior canal do YouTube: relevância fez com que o Amazon Prime Video contratasse o creator Imagem: Reprodução/YouTube
O aumento de preços é reflexo não só dos custos crescentes de produção, mas também da cobrança dos investidores. Para o pessoal de Wall Street, Netflix e os grandes grupos de mídia investiram pesado em produções próprias e agora precisam equilibrar o caixa. Para compensar esse cenário e aumentar receitas, as empresas lançaram opções com anúncios, mais baratas, mas o impacto no bolso —ao menos entre aqueles ouvidos pela Deloitte— foi limitado.
Outra pesquisa da Deloitte, publicada em novembro passado, já apontava essa tendência:os consumidores tendem a reduzir o número de assinaturas, o que pode levar à estagnação ou até mesmo à retração do mercado de streaming. Para reagir, os conglomerados devem ampliar ainda mais a oferta de pacotes combinados, como planos que incluem internet e serviços como Globoplay ou Netflix, ou ainda combos que reúnem várias plataformas por um único preço.
Redes sociais atacam
Em paralelo, cresce o consumo de conteúdo gerado pelo usuário ou por novos atores da indústria em apps como TikTok, Instagram, Facebook, Kwai e outros. Há dois fatores que contribuem para isso.
O primeiro é a forma como esses meios foram pensados. O conteúdo curto, exibido em um feed de rolagem infinita eselecionado por algoritmos, estimula a liberação de dopamina no cérebro. Esse neurotransmissor, ao atingir o córtex pré-frontal, gera a sensação de prazer. A conclusão vem de um estudo da Universidade Zhejiang, na China, publicado em 2022 na revista NeuroImage.
Já o segundo é explicado pela própria Deloitte: "Os criadores [da internet] trabalham para si mesmos, as plataformas têm opções de como incentivá-los, e o público obtém o conteúdo gratuitamente a partir de algoritmos projetados para atenção e engajamento. As plataformas sociais estão estendendo ferramentas de IA generativas para ajudar os criadores a administrar seus negócios, criar conteúdo, atingir públicos e anunciantes e combinar com patrocinadores de marca".
Dessa forma, nasce um ecossistema relativamente barato, com público engajado e alcance de milhões, criando conexões rapidamente. Mais do que isso: não há ponto de saída, já que o espectador pode passar horas assistindo a vídeos curtos, sem se interessar por outras mídias.
Estúdios e canais contra-atacam?
Os números confirmam a migração do público para formatos digitais mais curtos, o que coloca pressão nas mídias de formato longo.
Nos EUA, a receita do cinema caiu 11% no primeiro trimestre de 2025 em relação ao mesmo período de 2024, apesar do aumento no número de lançamentos neste ano, após o impacto da greve de Hollywood em 2023. Os dados são da Comscore.
Já no Brasil, a TV aberta registra queda contínua de audiência, acompanhando a tendência global. "Vale Tudo", grande aposta da Globo para o horário das 21h —incluindo com uma grande campanha publicitária, que começou a meses— teve a segunda pior estreia de uma novela do horário em toda a história. O primeiro capítulo obteve uma média de 24,1 pontos, ficando à frente apenas de sua antecessora, "Mania de Você".
Parte dos espectadores provavelmente agora está no Globoplay, mas uma faixa relevante dos mais jovens está na prática direcionando seus olhos para a tela do celular.
"Todos eles estão competindo por uma parte dessas seis horas de entretenimento diário. Isso aguça o novo cenário competitivo: os estúdios tradicionais enfrentam novos concorrentes que são muito maiores do que quase todos os estúdios tradicionais de TV e cinema combinados. As principais plataformas de vídeo social medem suas audiências globais e as horas de vídeo visualizadas a cada dia em bilhões. E elas dominam a publicidade global. Se os estúdios ainda não abraçaram essa nova realidade, eles enfrentam um imperativo de mudança: o engajamento com essas plataformas está corroendo o tempo gasto em streaming de TV e filmes."
Deloitte, na pesquisa 2025 Digital Media Trends
Para a Deloitte, a resposta passa em um investimento ainda mais pesado da chamada mídia legada, principalmente por meio de grandes franquias e propriedades intelectuais pré-estabelecidas. O fato é que já estão fazendo isso —o remake de "Vale Tudo", novamente, é um grande exemplo nacional—, mas muitas vezes sem o sucesso imaginado.
Produtos como a CazéTV, com esportes ao vivo e ancorados em influenciadores, também aumentam a competição pela atenção do espectador Imagem: Divulgação/Livemode
A empresa de pesquisas vai além: como a tecnologia publicitária e a IA agora estão no centro da economia do entretenimento, isso exige que estúdios invistam para tornar a publicidade mais eficiente e acessível. Para ampliar audiências e competir nesse novo cenário, fusões, aquisições e parcerias estratégicas serão essenciais.
Algumas recomendações do estudo geram debate, como o uso de IA generativa para dublagem e tradução, além de softwares para otimizar operações. Outras são mais óbvias, como a necessidade de estar presente nas redes sociais — aproveitando influenciadores para alcançar o público jovem por meio de recomendações ou adotando formatos curtos para construir narrativas e engajar audiência.
Netflix é ponto fora da curva
Contudo, o estudo perde um ponto importante: a experiência da Netflix.
A pioneira do setor se destaca, especialmente entre o público jovem. Segundo dados de fevereiro da Kantar Ibope relativos ao Brasil, considerando todos os dispositivos (incluindo celulares), seu share de audiência é de 4,3%. Embora fique atrás do TikTok (4,5%) e do YouTube (19,4%), supera todos os serviços de streaming por assinatura e já tem mais da metade da audiência da TV paga, que soma 8%.
Em parte, isso ocorre porque a Netflix segue há anos parte da cartilha que agora a Deloitte sugere. Mas também porque, ainda antes das redes sociais adotarem a atual abordagem, a companhiaestava empenhada em formar um novo público infantil, seja por meio de lançamentos, engajamento com os pais ou pela praticidade da tecnologia.
São essas crianças e bebês de dez, 15 anos atrás que, atualmente, fazem produções como "Wandinha", "Stranger Things" e outras virarem sucessos culturais —que retroalimentam a internet, criando um ciclo.
Até porque, mesmo em um mundo tão dinâmico e desafiador, uma verdade segue absoluta: quem planta, colhe. O que, afinal, os estúdios e canais tradicionais estão plantando?