O mágico instante em que a literatura capturou adolescentes do Paranoá
Conceição Freitas
A literatura entra na gente num instante mágico. Não precisa ter uma biblioteca em casa ou ir à seção infantil da livraria para se deixar encantar pelas histórias que borboleteiam nos livros. Claro que essas duas circunstâncias ajudam a fazer de uma criança um leitor, mas a magia pode acontecer em situações muito menos favoráveis.
Desde que fui à Jornada Literária no Paranoá, dias atrás, fiquei em estado de amorosidade contínua por aqueles meninos e aquelas meninas que me fizeram perguntas sobre um livro que conta 56 histórias de bravos candangos que participaram da construção de Brasília.
Não importa muito se o livro é bem escrito ou não, se tem qualidade literária ou não. O que vale, o que valeu ali, para aquelas garotas e garotos, foi ter associado sua própria história a uma única dentre as 56 que estão no livro. É a história de dona Nega, uma goiana de tempos ancestrais que conheci nos confins do quadradinho, onde o DF faz divisa com Goiás e Minas.
Já contei muitas vezes a história de dona Nega, mas ela sempre volta a me puxar pelo braço pra me lembrar que viver é bonito, mesmo que sofrido, é lírico mesmo que impiedoso, é divertido mesmo que às vezes quase insuportável.
As histórias dos arquitetos, dos engenheiros, dos topógrafos, dos bambambãs da construção de Brasília, as histórias das telefonistas, dos servidores públicos, dos japoneses que vieram plantar e criar a comida dos candangos, a história dos peões de obra, nenhuma delas aqueceu o coração dos meninos e das meninas do CEF 04, do Paranoá. Só uma os arrebatou, a de dona Nega.
Aqueles alunos, meio crianças, meio adolescentes, foram tomados por uma vida que se parece com a vida dos avós deles, com a cor da pele da maioria deles, com o cotidiano comprido e dificultoso de suas famílias. Eles se reconheceram não na bravura dos candangos da maquete e da máquina de calcular, mas na solidão de uma camponesa que nem mesmo participou da construção de Brasília. “Somos todos dona Nega”, eles escreveram num mural na escola.
Esse reconhecimento de si mesmo dentro de um livro lhes vinha sendo negada desde que o mundo é mundo. Só depois de meio milênio de Brasil é que a literatura passou a contar histórias de heróis e heroínas negras, a ser escrito por autores e autoras afrodescendentes.
É preciso dizer que a magia do nascimento de um leitor, como aqueles do Paranoá, não se dá como truque ilusionista: ela é precedida de intenso e verdadeiro trabalho com os professores e os alunos. O livro deixa de ser apenas (e não é pouco) um bonito e cheiroso volume de papel exposto nas livrarias, nas feiras e bienais, nos encontros literários. Ele nasce do contato real com o objeto livro, com o que nele está escrito e com quem o escreveu.
Antes da conversa com o autor, o livro é dissecado como uma lagartixa em aula de biologia e é nessa investigação cirúrgica que a literatura pode capturar mais um ávido (e complicado) leitor adolescente, esse sapiens tão atordoado com a percepção da própria existência, do próprio corpo, dos afetos, da sexualidade e do mundão que o envolve.
A magia que aconteceu com os alunos do CEF 04, participantes da Jornada Literária deste ano, foi construída dia a dia. Cada aluno desenhou, em sala de aula, a sua própria dona Nega, goiana que nasceu no Esbarrancado, era “oca de pai”, usava palavras e expressões de um português arcaico, caminhava léguas para as folias do Divino, morava numa casa de mais de 200 anos, de cozinha preta de fuligem, e que dormiu sentada numa cadeira da enfermaria do Hospital de Base, cuidando do marido. Essa goiana iletrada levou aqueles adolescentes para dentro da magia da literatura. A literatura renasceu em cada menino, em cada menina do 6º ano do CEF 04 naquela manhã mágica. E, por certo, em outras mágicas manhãs da Jornada Literária.
Conceição Freitas
Sou filha de quatro cidades: Manaus, Belém, Goiânia e Brasília. Repórter, cronista e dona de uma banquinha de afetos brasilienses. Guardo em mim amores eternos e 11 prêmios de jornalismo – o mais importante deles, Esso Nacional – por uma série de histórias de amor entre excluídos, portadores de necessidades especiais e errantes de todo tipo. Fui repórter de polícia, cidades, cultura, Brasil. Neta de negro e de índio, sou brasileira até o último fio de cabelo cacheado. Adoro descobrir o sentido que cada pessoa dá à vida. É do sentido delas que construo o meu.
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